Motta
Tenho memória de peixe e por essa razão eu gosto de documentar tudo que acontece comigo. Quando criança, escrevia diários ilustrados sobre os meus dias e é como se isso conservasse intactas as memórias que, de outra forma, se perderiam. Conservo ainda hoje esse hábito, assim como o da leitura, que herdei da minha mãe. Com meu pai, amante de quadrinhos, aprendi a desenhar e decidi que seria artista e escritora quando crescesse. Quando terminei o Ensino Médio, decidi cursar Letras. Me formei, prestei vestibular de novo e fui fazer uma segunda graduação em Artes Visuais. Na faculdade, conheci a cerâmica e me apaixonei. Desde então, venho tentando conciliar as paixões recentes e as antigas com a minha necessidade de pagar os benditos boletos.

Acho que minha ferramenta mais poderosa é a narrativa. Pra construí-la, eu uso o texto atrelado à imagem. Quando preciso me expressar de maneira mais orgânica e intuitiva, é à cerâmica que recorro.
Me inspiram sobretudo o humor do prosaísmo da vida cotidiana e algumas belezas sutis que precisamos escarafunchar pra encontrar nas pessoas e nas coisas.
Minha criatividade, pra se manifestar, exige que eu vivencie as ruas. Que eu dê uma de enxerida e ouça a conversa de duas amigas no metrô, que eu pare pra observar uma família interagindo num restaurante. É mais ou menos como um estudo de campo. Depois, só preciso encontrar a técnica que melhor se adeque àquele fragmento de espaço e tempo. Minha produção é meio caótica, pra dizer o mínimo. Mas normalmente ela começa com um texto no meu caderninho e depois vira alguma outra coisa.


Leio. E também vou ao cinema e visito museus. Eu me considero uma pessoa bastante sensível e não preciso de muita coisa pra entrar num estado de percepção aguçada do meu entorno. Um pouco de música já basta, então eu saio por aí com fones de ouvido. Mas tem época em que é muito difícil produzir, e aí o tento viajar.
Gosto muito da série “O encontro”. São quadrinhos que narram as circunstâncias em que conheci a Pata Risonha, essa personagem que virou meu alter ego e que interage comigo na maioria das histórias que publico no Instagram. São diálogos que revelam muito da minha sensibilidade. Na cerâmica, tem minha série de banhistas, que ainda está em andamento. Gosto de ficar surpresa com as cores e as formas que as peças assumem quando saem do forno e gosto da leveza que consigo transmitir com elas.


Em julho de 2009 estava morando na França e fui a um festival de fotografia que acontece todo verão em Arles, uma vilazinha na Provença onde o Van Gogh viveu uma parte de sua vida. Os prédios públicos da cidade se transformam em galerias durante o evento e dá pra passar o dia inteiro visitando exposições. Me impressionei com muita coisa, mas foi o trabalho de Duane Michals, um artista americano, que mais me tocou. Seu modo de expressão é a arte sequencial: ele constrói narrativas por meio da exposição conjunta de duas fotos ou mais. Ali eu entendi qual era o meu caminho dentro da arte. Comprei uma câmera, comecei a fotografar tudo o que via pela frente e voltei a desenhar.

Além de fotografar e de desenhar, li muitos quadrinhos enquanto estava na França. Me apaixonei pelo trabalho do Sempé e da Camille Jourdy, uma autora que ainda não foi publicada no Brasil. Também me inspira a literatura. Gosto de ler e reler Machado, Tchekhov, Barthes, Calvino, Alice Munro, Amélie Nothomb. A Série Napolitana, da escritora italiana Elena Ferrante, tem sido uma fonte constante de reflexões que eventualmente transponho para o meu trabalho por meio da linguagem visual.


Acho que pra responder a essa pergunta eu preciso falar um pouco de cerâmica. No Brasil, a história da cerâmica remonta às mulheres indígenas, que promoviam os rituais nos quais cuidavam tanto da obtenção como da modelagem, da secagem e da queima da argila. Hoje, a produção de cerâmica continua sendo majoritariamente feminina e de caráter popular. Coincidentemente, ela é muitas vezes considerada uma arte menor, desprovida da aura espiritualizada e do prestígio que detém a pintura, por exemplo. Então eu considero que existe, sim, um enorme preconceito - em relação ao que é popular e tradicionalmente ligado à mulher - que parte da classe artística e ao qual precisamos estar atentas.

Viajar, ver o mar. Produzir coisas que transmitam leveza.


Nós, mulheres, compramos muito facilmente a ideia de que somos uma fraude. Mas isso pode mudar se conseguirmos formar redes como esta do Projeto Curadoria, porque elas nos ajudam a compreender a força que temos enquanto coletivo. Estejamos juntas, compartilhemos experiências. Nenhuma de nós está só.
No ano que vem, pretendo estender a série “O encontro” e publicar uma novela gráfica. No momento, eu e uma amiga estamos organizando uma feira de produtores criativos independentes, que tem sido um desafio porque somos confrontadas o tempo todo com situações novas. Tudo o que fazemos pela primeira vez tem um pouco de árduo e um pouco de gratificante.
